dúvida do leitor

O leitor Rubem Milhomem envia à seção Gramatigalhas a seguinte mensagem:

“Desde a faculdade, nas aulas de processo civil e nos estágios, os professores diziam que não se ajuíza ação ‘contra’ ninguém, mas ‘em face de’ alguém. A explicação era que a ação se dirige ao Estado, e não à parte contrária, para que aquele faça prevalecer a pretensão. Já vi isso inclusive em livro de Português Jurídico. Agora, uma colega de trabalho, que trabalha no setor de revisão, diz que o correto é ‘contra’. O que eu faço?”

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Mover ação contra

1) Geraldo Amaral Arruda anota que o emprego de contra, em expressões como mover ação contra, decorre “da preferência pela fórmula tradicional, que é satisfatória para descrever como é vista e sentida a relação entre os litigantes”, o que fez com que Chiovenda, Liebman e Cândido Rangel Dinamarco não deixassem de referir a existência de uma contenda judiciária e de usar a preposição contra para fazer menção a tal disputa.

2) Bem por isso, complementa tal autor ser “evidente que, ao referir-se a essa luta a respeito de interesses conflitantes, o juiz retrate o que vê ante si, dizendo que as partes contrárias não estão apenas uma em face da outra, mas que vê perante o juízo adversários que se enfrentam em contenda judiciária, uma contra a outra”.

3) E alinha tal autor diversos exemplos colhidos em obra de Liebman, traduzida para o vernáculo por Cândido Rangel Dinamarco, e de Chiovenda, na tradução portuguesa de J. Guimarães Menegale, sempre em fidelidade para com o uso original, no qual se patenteia o antagonismo entre as partes de um processo e o próprio emprego da preposição contra e não da locução em face de.1

4) Sérgio Bermudes, notável advogado e mestre de processo, marcou, por sua vez, posição específica, escrevendo artigo com o significativo título A Favor do Contra, no qual acentua os seguintes aspectos:

a) o pedido de tutela se dirige efetivamente contra o Estado, devedor da prestação jurisdicional;

b) “cunhou-se, então, a locução prepositiva em face de, com o ânimo de deixar bem nítido que o autor não ajuizou a ação contra o réu, mas contra o Estado”;

c) “esse empenho de esclarecer, demasiadamente, as coisas só faz confundi-las e baralhá-las, aos olhos do homem comum, destinatário da administração da justiça, que entende, perfeitamente, até por atavismo, que uma ação haja sido proposta contra ele, mas queda perplexo e nervoso, quando ouve dizer que uma ação foi proposta em face dele”;

d) “infelizmente, o emprego da locução em face de vai ganhando terreno e expulsando da linguagem técnica o contra imemorial”;

e) “não há motivos de ordem lógica, ou jurídica, para o culto da expressão em face dele, incompatível com a tradição e o claro entendimento do alcance da iniciativa do autor, que vai a juízo contra o réu”;

f) “desde as fontes, identifica-se a ação, e dela se fala como um movimento do autor contra o réu”;

g) “os clássicos da antiga literatura processual portuguesa e brasileira sempre se referiram à ação de uma parte contra a outra”, como se pode confirmar em Pereira e Sousa, Paula Batista, Barão de Ramalho e João Monteiro;

h) “se os avanços científicos convenceram os processualistas brasileiros de que a ação se exerce contra o Estado, e não contra o réu, não chegaram a influir na sua linguagem, como revelam eloqüentes amostras, colhidas em apressada e perfunctória consulta, nos mananciais mais abundantes”, em obras de Pontes de Miranda, José Frederico Marques, Moacyr Amaral Santos e José Carlos Barbosa Moreira, este último, além de enfileirado entre os melhores processualistas do mundo, também “de notórios desvelos com o apuro da linguagem técnica”;

i) em conclusão, “num país em que tanto se deve reformar, da estrutura de várias instituições ao caráter de muitos homens, convém deixar quieto, no seu canto, o que não precisa ser mudado”, de modo que é preciso ser contra ao em face, “aliás, de pureza vernacular duvidosa”.2

5) Não se olvide que de uso corrente é a preposição contra em nosso Código Civil de 1916 – de reconhecido apuro lingüístico por decisiva atuação de Rui Barbosa – para significar a contraposição dos pólos ativo e passivo de uma demanda (em estruturação mantida pelo Código de 2002, nos casos em que persiste a respectiva determinação):

a) “… ação do segurado contra o segurador e vice-versa…” (art. 178, § 6º, II);

b) “… ação do proprietário do prédio desfalcado contra o do prédio aumentado pela avulsão…” (art. 178, § 6º, XI);

c) “… toda e qualquer ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal…” (art. 178, § 10, VI);

d) “… aqueles (herdeiros do doador) podem prosseguir na ação iniciada pelo doador, continuando-a contra os herdeiros do donatário, se este falecer depois de contestada a lide” (art. 1.185);

e) “Se o mandatário obrar em seu próprio nome, não terá o mandante ação contra os que com ele contrataram, nem estes contra o mandante” (art. 1.307);

f) “… terá (o mandante) contra este (o procurador) ação pelas perdas e danos resultantes da inobservância das instruções” (art. 1.313);

g) “… ficam salvas ao constituinte as ações, que no caso lhe possam caber, contra o procurador” (art. 1.318);

h) “Se o gestor se fizer substituir por outrem, responderá pelas faltas do substituto, ainda que seja pessoa idônea, sem prejuízo da ação, que a ele, ou ao dono do negócio, contra ela possa caber” (art. 1.337);

i) “Sempre que houver ação regressiva de uns contra outros herdeiros, a parte do co-herdeiro insolvente dividir-se-á em proporção entre os demais” (art. 1.798).

6) De igual modo, o Código de Processo Civil – diploma recente e de conhecida apuração formal quanto à precisão científica e quanto ao zelo pelo vernáculo – registra, em diversas passagens, o uso da preposição contra para estabelecer o antagonismo das demandas judiciais:

a) “… oferecer oposição contra ambos” (art. 56);

b) “… contra o outro prosseguirá o opoente” (art. 58);

c) “… contra ele correrá o processo” (art. 66, primeira parte);

d) “…o processo continuará contra o nomeante” (art. 66, segunda parte);

e) “… não poderá intentar nova ação contra o réu” (art. 268, parágrafo único);

f) “É permitida a cumulação, num único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos…” (art. 292, caput);

g) “Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens: … II – quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência…” (art. 593, II);

h) “Da execução por quantia certa contra devedor solvente” (rubrica do Capítulo IV, que precede o art. 646);

i) “Da execução contra a Fazenda Pública” (rubrica da Seção III, que precede o art. 730);

j) “… pode o juiz ouvir, em três (3) dias, aquele contra quem (o protesto contra a alienação de bens) foi dirigido…” (art. 870, parágrafo único).

7) Também nessa exata conformidade, é de se ver que Francisco Fernandes registra se deva dizer ação contra, simplesmente ignorando a existência de ação em face de, com base em exemplo de Camilo Castelo Branco: “Aconselharam-no que intentasse ação judiciária contra os sócios”.3

8) Igual proceder tem Celso Pedro Luft, que apenas refere ação contra, nada aduzindo acerca de ação em face de.4


1Cf. ARRUDA, Geraldo Amaral. A Linguagem do Juiz. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 89-93.
2Cf. Revista de Processo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. vol. 65, p. 219-223.
3Cf. FERNANDES, Francisco. Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos. 2. ed., 6. impressão. Porto Alegre: Editora Globo, 1969. p. 8.
4Cf. LUFT, Celso Pedro. Dicionário Prático de Regência Nominal. 4. ed. São Paulo: Ática, 1999. p. 26.


Originalmente publicado em: Migalhas