dúvida do leitor

O leitor Marcelo Menezes envia a seguinte dúvida ao Gramatigalhas:

“Prezado Dr. José Maria, agradeceria seus esclarecimentos sobre a seguinte dúvida: ‘O Manual de Redação da Presidência da República’, respaldado por lei, estabelece que, na redação de leis, a numeração dos artigos deve ser ordinal até o artigo nove e cardinal nos posteriores. A dúvida é se, na elaboração de contratos em geral, as cláusulas também devem obedecer ao mesmo critério. Muito obrigado.”

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1) Um leitor viu que o Manual de Redação da Presidência da República estabelece que, na redação das leis, a numeração dos artigos deve ser ordinal até o artigo nono e cardinal nos posteriores. E sua dúvida é se, na elaboração dos contratos em geral, as cláusulas também devem obedecer ao mesmo critério.

2) Antes de responder ao leitor, fazem-se algumas considerações mais abrangentes, para que possa haver um melhor entendimento da resposta a ser dada à dúvida por ele trazida, e isso sem esquecer que, no que concerne à elaboração e à redação das leis e de seus dispositivos, a matéria está regulada pela Lei Complementar nº 95, de 26.02.98, inclusive para determinar que os artigos, parágrafos, incisos, alíneas e itens seguirão “numeração ordinal até o nono e cardinal a partir deste” (art. 10).

3) Abrangendo a designação dos papas, reis e séculos, ensina Domingos Paschoal Cegalla: “usam-se numerais ordinais de um dez e cardinais de onze em diante” (1999, p. 367).

4) Sintetiza-se essa posição com ensino de José de Nicola e Ernani Terra: “na indicação de papas, reis, séculos, capítulos, partes de obra, usam-se os numerais ordinais até décimo (inclusive). A partir daí, usam-se os cardinais” (2000, p. 134).

5) Para representar uma segunda posição, começa-se com o ensino de Celso Cunha (1970, p. 136), para quem se usa “o ordinal até nove, e o cardinal de dez em diante” (artigo nonoartigo dez), e isso sempre que o numeral vier depois do substantivo (1970, p. 262).

6) Em mesmo sentido, de acordo com Eliasar Rosa, “usam-se os numerais ordinais do 1º ao , inclusive. Do art. 10 em diante empregam-se os cardinais. Dir-se-á: art. 1ºart. 10art. 2ºart. 11 etc.” (1993, p. 103).

7) Em terceira posição, Artur de Almeida Torres (1966, p. 81) faz uma distinção: a) “Nas séries de reis e papas e na designação de séculos ou capítulos, usamos do ordinal até dez, e do cardinal de onze em diante”: Luís DécimoLuís OnzePio DécimoPio Onzeséculo décimoséculo onzecapítulo décimocapítulo onze; b) “Na numeração de artigos de leis empregamos o ordinal até nove, e o cardinal de dez em diante: artigo primeiroartigo nonoartigo dez“.

8) Também Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante (1999, p. 312) bifurcam o problema e duplicam as soluções: a) por um lado, “para designar papas, reis, imperadores, séculos e partes em que se divide uma obra, quando o numeral vem depois do substantivo, utilizam-se os ordinais até décimo e a partir daí os cardinais”: Pio 9º (nono), Pio 10º (décimo), Pio 11 (onze); b) por outro lado, “para designar leis, decretos e portarias utiliza-se o ordinal até nono e o cardinal de dez em diante”: artigo 1º (primeiro), artigo 9º (nono), artigo 10 (dez).

9) Buscando remediar a divergência entre os autores e as dificuldades de emprego no caso concreto, ensina Vitório Bergo (1944, p. 212) – em lição que há de ter integral aceitação nos casos concretos – que, na generalidade dos casos, se há de empregar o numeral ordinal até nove (século nono); o seguinte pode ser século décimo ou dez; daí por diante, usa-se o cardinal (século onze).

10) Em continuação, diga-se que, por brevidade e simplificação, tem-se defendido o uso indiscriminado dos cardinais, em vez dos ordinais, na enumeração de séries de objetos e de partes em que se dividem os diplomas legais, como capítulos, artigos, parágrafos, incisos. Exs.: capítulo doisartigo dez.

11) Nesse campo, Eduardo Carlos Pereira (1924, p. 250) leciona que “os cardinais pospõem-se ao substantivo quando por brevidade se empregam pelos ordinais” (página doiscasa vinte e um, por página segunda casa vigésima primeira).

12) Ainda na lição desse mesmo autor, quando se trata de “longas séries, como as páginas de um livro ou as casas de uma rua, emprega-se pelo ordinal o cardinal, que se conserva invariável”, exemplificando ele próprio: “página vinte e dois, por vigésima segundacasa trinta e um, por trigésima primeira” (PEREIRA, 1924, p. 312).

13) E complementa: “a título de brevidade, usamos constantemente os cardinais pelos ordinais” – casa vinte e umpágina trinta e dois – com a complementação de que “os cardinais um dois não variam nesse caso porque está subentendida a palavra número” (PEREIRA, 1924, p. 312).

14) Também lembra Edmundo Dantès Nascimento (1982, p. 9): “por brevidade na série de objetos, artigos, cláusulas de lei, capítulos, parágrafos, empregam-se os cardinais. Art. 321Lei n. 322casa 21fls. 41capítulo 1cláusula 2, etc.”. E complementa: a) “neste caso não variam os numerais um dois“; b) diz-se na linguagem forense: “aos 20 dias do mês de maio“, “a fls. trinta e duas“.

15) Reitere-se, contudo, que essa possibilidade de uso do cardinal pelo ordinal tem como regra primeira a de que o numeral posponha-se ao substantivo, motivo por que se há de atentar à necessidade de correção de um giro muito frequente em tomadas de depoimentos de policiais: a) 78° DP (leia-se: septuagésimo oitavo Distrito Policial) (correto); b) DP 78 (leia-se: Distrito Policial setenta e oito – subentendendo-se número setenta e oito) (correto); c) 78 DP (leia-se: setenta e oito Distrito Policial) (errado).

16) Em interessante observação nesse sentido, também acrescentam José de Nicola e Ernani Terra (2000, p. 54-5): “O numeral anteposto ao substantivo deve ser lido como ordinal, concordando com esse substantivo. Já o numeral posposto ao substantivo deve ser lido como cardinal, concordando com a palavra número, que se considera subentendida”: III Salão do automóvel (terceiro), II Maratona Estudantil (segunda), VIII Copa do Mundo (oitava), casa 2 (dois), apartamento 44 (quarenta e quatro).

17) Ainda quanto ao que se dá com os textos legais, interessante observação final vem de Adalberto J. Kaspary: “Ao contrário do que se observa nos documentos legais do Brasil, em que os artigos são numerados por meio de algarismos ordinais do primeiro ao nono, e por meio de algarismos cardinais do décimo em diante, na legislação codificada de Portugal todos os artigos vêm numerados por meio de algarismos ordinais: art. 64ºart. 1.689º, etc.” Mas excepciona tal autor: “No texto da Constituição da República Portuguesa, adota-se a numeração articular empregada no Brasil” (1996, p. 12).

18) Com essas explicações, pode-se responder ao leitor do seguinte modo: a) se anteposto ao vocábulo cláusula, o numeral será sempre ordinal (1ª Cláusula, 9ª Cláusula, 11ª Cláusula, 20ª Cláusula); b) se posposto ao vocábulo cláusula, o numeral normalmente também será ordinal de 9 (Cláusula 1ª, Cláusula 9ª) e cardinal de 11 em diante (Cláusula 11, Cláusula 20); c) quanto ao número 10, nesse caso, exatamente porque há divergência entre os autores, o melhor é permitir que se empregue tanto o ordinal quanto o cardinal (Cláusula 10 ou Cláusula 10ª); d) por brevidade e simplificação, também é possível o uso indiscriminado dos cardinais, quando pospostos aos respectivos substantivos em tais casos, mesmo que o número seja inferior a dez (capítulo 2, art. 7, § 2, alínea 2, seção 1, cláusula 2); e) nesse último caso, a leitura do numeral se faz no masculino (alínea dois, seção um, cláusula dois); f) ainda nesse caso, não é possível o uso do cardinal pelo ordinal, se o numeral preceder o substantivo (78º DP se lê septuagésimo oitavo distrito policial, ou distrito policial setenta e oito [subentendendo a palavra número], mas não setenta e oito distrito policial ou setenta e oito DP).

Originalmente postado em Migalhas.