(Imagem: Arte Migalhas)

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Introdução

Em 2012, veio à luz o novo Código Florestal (Lei 12.651/12), e, em 2018, houve o julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas no Supremo Tribunal Federal contra diversos de seus dispositivos (ADIns 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937. Tais ações foram decididas conjuntamente no bojo da Ação Declaratória de Constitucionalidade 42/2016, com o reconhecimento da constitucionalidade da grande maioria dos dispositivos impugnados.

Mesmo ante esse cenário na mais elevada Corte Constitucional, todavia, os juízos e tribunais infraconstitucionais do País, incluindo o Superior Tribunal de Justiça, em suas decisões, continuaram a contrariar sistematicamente o texto expresso da nova codificação florestal, quer ignorando a existência de diversos de seus dispositivos, quer negando-lhes vigência, quer mesmo tolhendo-lhes eficácia no caso concreto.

Apenas para ilustração, citam-se dois dentre diversos exemplos.

Num primeiro caso, o STJ barrou a aplicação do art. 15 do CF-2012 – que admite “o cômputo das Áreas de Preservação Permanente no cálculo do percentual da Reserva Legal” – e o fez argumentando que não se deve “admitir a aplicação das disposições do novo Código Florestal a fatos pretéritos, sob pena de retrocesso ambiental”.1

Ora, mesmo sem aprofundar o mérito dessa discussão específica, alguns aspectos são aqui de importante relevo: (i) na condição de norma de acertamento do anterior passivo ambiental, é inegável que o art. 15 do CF-2012 constitui evidente regra do novo diploma a reger situação anterior a sua vigência; (ii) e tal dispositivo foi julgado constitucional pelo STF, quando decidiu ação direta que impugnou sua constitucionalidade; (iii) o próprio relator das ADIs, Min. Luiz Fux foi claro para assentar que “não é adequado desqualificar determinada regra legal como contrária ao comando constitucional de defesa do meio ambiente (art. 225, caput, CRFB), ou mesmo sob o genérico e subjetivo rótulo de ‘retrocesso ambiental’, ignorando as diversas nuances que permeiam o processo decisório do legislador, democraticamente investido da função de apaziguar interesses conflitantes por meio de regras gerais e objetivas”2; (iv) além disso, o Min. Gilmar Mendes complementou que não via “a ocorrência do alegado retrocesso ambiental, mas tão somente ponderação de princípios constitucionais em favor da segurança jurídica, do desenvolvimento sustentável e da efetividade da proteção do meio ambiente”3; (v) mais recentemente, em Reclamação específica, o STF entendeu que uma decisão como essa do STJ “encontra-se em dissonância com os acórdãos proferidos” pela Suprema Corte nos julgamentos das já referidas ações diretas, “na medida em que deixou de dar aplicabilidade retroativa às normas ambientais declaradamente constitucionais, em sentido oposto ao que já fixado neste Supremo Tribunal”4; (vi) e o que há, num caso como esse, em última análise, é nada menos do que uma “recusa formal de aplicação de uma norma com eficácia retroativa sobre fato passado, apesar do reconhecimento, pela Corte [ou seja, pelo STF], da constitucionalidade das disposições”, e, com isso, se “esvazia a eficácia dos dispositivos declarados constitucionais pela Suprema Corte”5; (vii) nesse quadro, não há como defender, com base nos critérios legais, a postura tomada pelo STJ no v. acórdão referido do exemplo citado.

Num segundo caso, no que tange aos aspectos de regularização ambiental de que tratam os arts. 59/68, o mesmo STJ, mais uma vez, incidiu em decisão contra legem ao assentar que, “em matéria ambiental, a adoção do princípio ‘tempus regit actum’ impõe obediência à lei em vigor quando da ocorrência do fato”.6

Aqui também, todavia, observada a circunstância de que os arts. 59/68, no que tange aos itens discutidos, foram tidos por constitucionais pelo STF, é preciso alinhar, dentre outros, os seguintes argumentos: (i) se o art. 59, referindo-se aos dispositivos acima especificados, inicia dizendo que “a União, os Estados e o Distrito Federal deverão implantar Programas de Regularização Ambiental (PRAs) de posses e propriedades rurais, com o objetivo de adequá-las aos termos deste Capítulo”, óbvio está que tal adequação só pode dizer respeito à regularização do passivo ambiental encontrado pela nova codificação florestal e concernente a uma atuação humana anterior à codificação atual sobre posses e propriedades rurais; (ii) ora, se o mencionado dispositivo foi julgado constitucional pelo STF, apenas incumbe aos entes federativos acima descritos implantar tais PRAs, com os quais, sem outra possibilidade de interpretação, se hão de regularizar as posses e as propriedades rurais encontradas irregulares pela nova codificação florestal, ou seja, em desacordo com a legislação revogada; (iii) se não se entender que os arts. 59/68 concernem à possibilidade de regularização de situações afrontosas da legislação revogada, assim encontradas pela codificação atual, então simplesmente não fará sentido algum a implantação dos PRAs referida pelo art. 59; (iv) em abono dessa tese, um acórdão proferido em Reclamação pelo STF tratou de caso em que o STJ, “com base nos princípios do tempus regit actum e da vedação de retrocesso ambiental, reformou acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que aplicara o art. 68 da Lei 12.651/2012 a fatos anteriores à sua vigência”; (v) de modo mais específico, a ementa do acórdão reclamado registrava que, “em matéria ambiental, deve prevalecer o princípio tempus regit actum, de forma a não se admitir a aplicação das disposições do novo Código Florestal a fatos pretéritos, sob pena de retrocesso ambiental”; (vi) para o STF, todavia, no v. acórdão que decidiu a reclamação, “o raciocínio adotado pelo STJ, fundado nos princípios do tempus regit actum e da vedação de retrocesso ambiental, acarreta burla à decisão proferida pelo Plenário desta Corte na ADC 42/DF e nas ADIs 4.901/DF, 4.902/DF, 4.903/DF e 4.937/DF”.7

Apenas por esses dois exemplos, constata-se, em suma, ante tantas confusões conceituais e equívocos de hermenêutica referentes à nova codificação florestal, como de total relevo erigir premissas, aspectos e princípios que devem ser observados tanto pelo estudioso como pelo intérprete e pelo aplicador para a adequada interpretação e aplicação do Código Florestal de 2012.8

2. O Código Florestal é direito positivo

Com essas considerações, num primeiro plano, importa frisar que o Código Florestal é direito positivo. Não é conselho, nem opinião, nem posição doutrinária: é direito posto. E, assim (embora o que se vai dizer possa causar um espanto inicial em alguns), firma-se aqui a posição de que não há no presente estudo intento algum de tomar partido do meio ambiente por um lado, nem de patrocinar a defesa unilateral da produção agrossilvipastoril ou do agronegócio por outro lado.

Isso quer significar que, não importando o rumo prático que tomem as determinações do CF-2012 no campo de sua aplicação, busca-se aqui defendê-lo como Lei regularmente aprovada e vigente, e essa defesa se faz com a plena consciência e convicção de que, diante dos diversos valores confrontados para sua feitura, “em face dos princípios democráticos e da separação dos poderes, é ao Poder Legislativo que assiste a primazia no processo de ponderação”9 sobre o que é melhor ou não para o objeto das disposições legais, e não aos demais poderes, nem aos doutrinadores, nem mesmo aos aplicadores ou julgadores.

Esse posicionamento, aliás, encontra ressonância no acórdão que decidiu as ADIs ajuizadas contra o CF-2012, julgadas em conjunto na ADC-42/16, onde se assevera que “não é adequado desqualificar determinada regra legal como contrária ao comando constitucional de defesa do meio ambiente (art. 225, caput, CRFB), ou mesmo sob o genérico e subjetivo rótulo de ‘retrocesso ambiental’, ignorando as diversas nuances que permeiam o processo decisório do legislador, democraticamente investido da função de apaziguar interesses conflitantes por meio de regras gerais e objetivas”.10

Além disso, quando se afirma essa posição, tem-se fixa a ideia de que dificilmente se há de encontrar uma lei mais discutida na história do Congresso Nacional. Foram mais de 200 audiências públicas e privadas com ambientalistas, organizações não governamentais, agricultores, criadores, pesquisadores, juristas e gestores. No plano político, resultou sua tramitação em um placar representativo de enorme apoio parlamentar: na votação original do projeto na Câmara dos Deputados, 410 votos favoráveis contra 63. No Senado, 59 contra 7. E, em todo esse processo legislativo, fez-se presente o apoio dos principais partidos, quer de governo, quer de oposição.

Por todos esses motivos, não importando suas imperfeições e aspectos que, como resultado de obra humana, precisem ser corrigidos, o CF-2012 constitui diploma legal que merece respeito e aplicação, e sua legalidade merece ser ferrenhamente defendida.

3. Código Florestal não se confunde com Direito Ambiental

Num segundo plano, impende estabelecer que o Código Florestal não se confunde com o Direito Ambiental, e dessa assertiva se devem extrair importantes ilações.

Em realidade, fiel ao conceito conferido pelo inciso I do art. 3º da Lei 6.938/1981 (que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente), a expressão Direito Ambiental concerne a toda a extensão e a todos os aspectos que envolvem o meio ambiente, abarcando um alargado campo e tendo por escopo o estudo de todas as relações do homem com a natureza considerada em sua vastidão.

Nesse panorama, de uma banda, em atuação de índole positiva, busca amplamente proteger a natureza; de outra banda, se é que se pode falar em atuação de cunho negativo, procura lutar contra a poluição e contra as ameaças à natureza globalmente consideradas. Abrange, nessa atividade, mais do que um conjunto de normas de direito posto considerado em qualquer de seus setores. E, em seu evolver multifacetado, tende “a penetrar todos os sistemas jurídicos existentes para os orientar num sentido ambientalista”.11

Nessa tarefa, procura interligar o que cada qual dos ramos correlatos do Direito tem em comum – Direito das águas, Direito da atmosfera, Direito do solo, Direito florestal, Direito da fauna, Direito da biodiversidade, etc. – , pondo-se como verdadeira “argamassa da identidade dos instrumentos jurídicos de prevenção e de reparação, de informação, de monitoramento e de participação”.12

Enquanto isso, o Código Florestal configura um conjunto de regras de direito positivo, de modo que, na consonância com a rubrica estampada em seu frontispício, abrange aspectos específicos de determinações de direito posto.

Com esses limites de atuação, sem esquecer o passado, mas com os olhos voltados também para o hoje e para o futuro, sua elaboração obedece ao influxo do dever-ser e, de igual modo, se impregna de uma visão de realidade. Por isso, de modo prático, nessa tarefa, a par das regras que vão reger as condutas a contar de sua vigência, também reconhece e aceita “fatos consumados que foram se acumulando ao longo dos anos”, mesmo que em postura de contrariedade ao ordenamento jurídico então vigente; e, assim, no evolver das situações, busca “conciliar a proteção daquilo que, efetivamente, deve ser protegido, com a produção do que deve ser produzido”.13 E, nessa tarefa, às vezes “[tem que optar, e efetivamente opta,] pela realidade em sacrifício da teoria”.14

Com esses conceitos e essas distinções, podem-se imaginar, para maior facilidade didática, dois círculos, um maior e outro menor, que não sejam concêntricos, de modo que o menor não esteja integralmente inserido no maior, mas que se entrecortem, de maneira que ambos mantenham a maior parte em comum, e, ainda assim, cada qual preserve uma área de autonomia, sem identificação plena ou pertinência necessária e absoluta com o outro.

Esses círculos assim imaginados são exatamente o Direito Ambiental (o maior) e o Código Florestal (o menor): por um lado, ambos se entrecruzam e mantêm em comum grande parte de suas áreas e de suas determinações; de outra banda, um deles não se insere integralmente no outro, de modo que cada qual também preserva uma parcela de autonomia e de independência.

Dizendo de outro modo, em sua maior extensão, mantêm ambos regras comuns e são bafejados pelos mesmos princípios norteadores e mesmas determinações legais; todavia, em alguns pontos específicos e em algumas áreas e compartimentos, embora não tão extensos, preservam um campo de autonomia para diretrizes e determinações próprias, desgarrando-se, nessa extensão, de interferência e de influência recíprocas.

Nesse quadro, em termos mais práticos e em linhas gerais, pode-se dizer que, enquanto o Direito Ambiental é norteado pelas regras genéricas e diretrizes da Lei 6.938/1981, o Código Florestal basicamente se restringe às determinações constantes da lei 12.651/12. E, para os efeitos do que aqui se quer deixar muito claro, os dispositivos de ambos os diplomas legais nem sempre se caracterizam por uma total compatibilidade, e, assim, naquilo que apresentam de divergência, devem merecer aplicação autônoma na prática, sem que se intente opor óbice de um para tentar empecer a incidência do outro.

4. Outras leis não podem invalidar o Código Florestal

Em decorrência sobretudo do que foi dito no item anterior, num terceiro plano, regras constantes de outros diplomas legais não podem pretender revogar ou diminuir em eficácia normas expressas e específicas do Código Florestal, apenas pelo fato de não guardarem compatibilidade com estas últimas.

Em termos mais claros, insista-se em que dispositivos constantes de outros diplomas (como é o caso da própria lei 6.938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente) não podem servir de argumento juridicamente bastante ou válido para barrar a incidência e a aplicação dos artigos específicos do CF-2012, sabidamente reconhecidos como constitucionais, sobretudo ante os resultados das ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas contra ele (ADIns 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937), julgadas conjuntamente no bojo da ADC 42/16.

Em verdade, se tais ADIns foram repelidas e se foram tidos por constitucionais pela mais alta corte de controle constitucional do País os dispositivos por elas impugnados – questionados porque supostamente feriam regras de Direito Ambiental – , devem os mencionados artigos ser regularmente aplicados aos casos concretos, sem que assista ao intérprete ou ao aplicador voltar a negar-lhes vigência ou eficácia prática por outros pretextos.

Exemplificando com um caso prático, o art. 14 da lei 6.938/81 consagra o princípio do poluidor-pagador e determina que aquele que causa inconvenientes e danos ao meio ambiente há de responder por eles e, por conseguinte, há de sujeitar-se a uma série de severas penalidades, e isso independentemente da existência de culpa.

Enquanto isso, os arts. 59/68 do CF-2012 permitem que determinadas extensões territoriais e certas atividades nelas exercidas em afronta à legislação revogada (e ao próprio diploma atualmente em vigor quando se consideram suas disposições gerais [arts. 1ºA/58]) possam, mesmo em tal situação de afronta à lei, ser regularizadas perante a nova codificação florestal, algumas mediante o cumprimento de alguma providência em contrapartida e outras até mesmo sem necessidade de contraprestação.

Pois bem. Em razão exatamente da premissa que se considera no presente item, o dispositivo por primeiro citado (art. 14 da lei 6.938/81), pertencente à lei que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, não pode servir de argumento bastante para empecer a aplicação prática e a eficácia dos dispositivos referidos da codificação florestal em vigor (arts. 59/68), quando instituiu os Programas de Regularização Ambiental.

5. Os chamados princípios não revogam o Código Florestal

Num quarto plano, não assiste aos assim chamados princípios o poder e a força para revogar disposições expressas do Código Florestal, nem para negar-lhes vigência ou reduzir-lhes a eficácia.

De modo mais específico, os princípios que os estudiosos dizem informar o Direito Ambiental – incluindo o da precaução, o da prevenção e aquele que veda o retrocesso ambiental – não dispõem de lastro jurídico para inviabilizar a aplicação dos dispositivos expressos da codificação florestal nos casos concretos.

Essa mesma observação, aliás, independentemente de outros aspectos que possam ser adicionalmente considerados, vale para os itens que o Legislador Executivo teve a iniciativa de acrescer como parágrafo único ao art. 1º-A do CF-2012 sob o rótulo de princípios, ao depois convertidos em disposições legais.

Em realidade, nesse quadro e nesse sentido, a par de outras considerações possíveis, um princípio – tal como aqui se considera para os efeitos desta análise – deve ser tido apenas como um fundamento do Direito, como uma exigência de otimização do ordenamento jurídico, de modo a permitir “o balanceamento de valores e interesses”.15

E, nesse panorama, calha como luva a lição de Nicolas de Sadeler, segundo quem os princípios, tais como assim considerados, nunca bastam por si sós, de modo que “o legislador não pode estabelecer simplesmente princípios em forma de lista de desejos, sem se envolver em concretas previsões”, mas deve “legislar área por área, processo por processo, para conferir[-lhes] expressão total”. E isso permite concluir que “os princípios, em princípio, destinam-se a permitir que o legislador dê vida a eles, por intermédio de leis que venham a implementá-los”.16

6. Princípios fundamentais não são superiores ao Código Florestal

Em consequência do quanto referido no item anterior, num quinto plano, é preciso dissentir em plenitude da posição de alguns que partem do entendimento de que “os códigos apenas representam para os juristas um ponto de partida”17de modo que, nesse quadro, “os princípios fundamentais figuram, na prática e por definição, como superiores às regras jurídicas”.18

Em realidade, com os descalabros havidos, na esfera jurídica, ao longo das últimas décadas, em nosso País, sobretudo a contar dos anos 1970, deve-se dizer que, nos tempos atuais, com tantos abusos de raciocínio, equívocos de exegese e negativas equivocadamente construídas ou mesmo não fundamentadas de vigência da lei, chega-se a compartilhar do mesmo sentimento que tomou conta de Eros Grau, quando, parafraseando ídolo de nosso cancioneiro, assim se exprimiu: “passei a realmente temer juízes que, usando e abusando dos princípios […], sem saber o que é direito, fazem suas próprias leis”.19

E assim continuou tal autor em seu desabafo gerado pelo afastamento completo das regras de hermenêutica por parte de muitos: “Tenho medo do direito alternativo, medo do direito achado na rua, do direito achado na imprensa…”20 Em verdade, não se pode esquecer que, de modo catastrófico, “as coisas resultam terrivelmente perigosas quando juristas, juízes e tribunais à nossa volta danam-se a decidir a partir de valores, afastando-se do direito positivo“.21

Para essa situação de equívoco, há quem prefira a denominação de pamprincipiologismo e que, assim, conceitue tal realidade como “uma espécie de patologia especialmente ligada às práticas jurídicas brasileiras e que leva a um uso desmedido de standards argumentativos que, no mais das vezes, são articulados para driblar aquilo que ficou regrado pela produção democrática do direito, no âmbito da legislação (constitucionalmente adequada)”22, e tudo com severos “impactos negativos que envolvem a violação da lei por meio de argumentos metajurídicos no interior de uma democracia constitucional”.23

Não se deve esquecer, todavia, tanto na exegese teórica como na solução prática dos casos, que a Ciência do Direito e o Poder Judiciário constroem significados, mas enfrentam limites. Nesse quadro, indispensavelmente, “o dispositivo é o ponto de partida da interpretação”, e não há outra premissa possível na normalidade dos casos, a não ser a de que o intérprete e o aplicador não partem do nada para erigir uma solução, e sim partem do postulado de que “as normas são construídas pelo intérprete a partir dos dispositivos”.24

Sintetizando de outro modo: se existe lei a ser aplicada ao caso concreto, não pode o operador do direito simplesmente ignorá-la ou substituí-la25, até porque não é “reconhecível ao intérprete o poder de desrespeitar, abertamente, uma disposição legal”.26

E se acrescente que, sobretudo em atenção à peculiaridade de nosso ordenamento jurídico, que se funda em uma constituição escrita e se integra por uma legislação infraconstitucional também escrita, não se pode partir, no processo interpretativo, de um direito livre e desviado do sistema hierarquizado das fontes formais, de sorte a ensejar ao intérprete, nessa empreitada, afastar-se impunemente do respeito e da observância da lei, sobretudo nos casos em que, no subjetivo parecer do aplicador, a determinação expressa da lei não satisfaça eficientemente as exigências de seu conceito de justo e adequado.

7. Só não se aplica uma lei inconstitucional

Seguindo nessa esteira, num sexto plano, deve-se firmar o postulado de que ao julgador apenas assiste não aplicar uma lei em regular vigência e eficácia, se ele a reputa inconstitucional.

No mister de decidir o caso concreto, não cabendo ao julgador a faculdade de simplesmente se afastar da lei para substituir um dispositivo dela, a seu talante, por solução que lhe pareça mais justa, ou mais consentânea com seu modo de pensar, ou mais adequada, ou coisa assim, é certo que, ao Magistrado de primeiro grau, antes de tomar a direção por ele escolhida para o respectivo comando, que implique negar aplicação a dispositivo de lei existente, incumbe a tarefa de explicitar suas razões jurídicas de convencimento para o referido reconhecimento de inconstitucionalidade, o quanto baste para que possam ser entendidos seus motivos para negar aplicação à lei.

Em segundo grau de jurisdição, a decisão colegiada que declarar a inconstitucionalidade deve seguir, ademais, forma e rito próprios e sacramentais, com aspectos procedimentais peculiares (CPC, art. 948 e seguintes).

Adicionalmente, quando o feito está além do primeiro grau de jurisdição, não se pode esquecer a exigência de reserva de plenário estabelecida pelo art. 97 da Constituição Federal, o qual prevê a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de um dispositivo de lei apenas com a aprovação da maioria absoluta dos membros do tribunal ou dos membros do respectivo órgão especial.

Além dessa necessária subordinação à reserva de plenário, ainda se lembra o assentamento da Súmula Vinculante n. 10 do STF, segundo a qual “viola a cláusula de reserva de plenário […] a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.

8. Para lacuna da lei, analogiacostumes e princípios gerais de direito

Seguindo adiante, num sétimo plano, uma vez que se veda em nosso sistema legal a aplicação do non liquet, de modo que não assiste ao julgador eximir-se de despachar, decidir ou sentenciar a pretexto de inexistência de lei para o caso concreto, o julgador, quando estiver diante de lacuna da lei (e apenas nessa hipótese, ainda que causada pelo reconhecimento de inconstitucionalidade da lei existente), haverá de recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.

Quer quando não há lei que se aplique ao caso concreto, quer quando se tenha reputado inconstitucional a que existe para tanto, o juiz, “ao se deparar com hipóteses de lacunas normativas, não produz normas livremente“, e isso porque “a abertura dos textos de direito, embora suficiente para permitir que o direito permaneça ao serviço da realidade, não é absoluta. Qualquer intérprete estará, sempre, permanentemente por eles atado, retido”.27

Em termos práticos, por consequência: se é negativa a busca por solução no direito posto, expresso e específico, então o aplicador – sem que se lhe faculte produzir livremente, ao largo de regras e do sistema, uma solução para o caso concreto – deve obedecer aos ditames do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

9. Só se aplicam princípios gerais se há lacuna da lei

Num oitavo plano, ademais, em complementação ao item anterior, é preciso firmar que os princípios gerais de direito apenas podem ser invocados em casos de lacuna da lei, e mesmo assim após busca infrutífera de solução na analogia e nos costumes.

Na prática, tais princípios são regras destinadas a auxiliar o juiz na colmatação da norma, do ato ou do negócio jurídico, quando carentes de legislação específica. Não são normas substituidoras de leis ao talante do intérprete ou do aplicador, e é indisputável seu caráter de fonte supletiva das lacunas.

Não assiste, por isso, ao julgador tomá-los, a seu arbítrio, em lugar e à revelia das normas existentes e regularmente aprovadas pelo Poder Legislativo. Vale dizer que têm eles como função principal auxiliar o intérprete no preenchimento das lacunas, no vazio da norma expressa (art. 4º da LINDB e art. 140, caput, do CPC), na condição de verdadeiros suplementos da lei omissa.

Por isso, em síntese, vejam-se as fases de um raciocínio em que eles estejam presentes: (i) “os princípios servem para o preenchimento de vazios legislativos”, vale dizer, para “dar solução a casos nos quais o ordenamento positivado se encontre diante de uma lacuna”28; (ii) desse modo, insista-se em que “apenas em caso de inexistência ou omissão da lei é que o julgador poderá valer-se dos demais elementos de integração da norma jurídica para a solução do caso concreto”; (iii) e, nesse caminho, há uma sequência rígida dos socorros de que o aplicador se haverá de valer – “por primeiro, da analogia; ao depois, dos costumes; e, por fim, dos princípios gerais do Direito“.29

10. Disposições gerais disposições transitórias: naturezas e campos distintos

Num nono plano, não se pode esquecer que as disposições gerais do CF-2012 (arts. 1º-A/58) têm natureza diversa de suas disposições transitórias (arts. 59/68), e isso significa que ambos os blocos dispõem de campos próprios e específicos de aplicação e incidência, de modo que, nesse quadro, não podem as primeiras servir de pretexto para reduzir ou aniquilar a vigência e a eficácia das segundas.

Em realidade, na esfera intrínseca do CF-2012, deve-se insistir em que o legislador, a par de estabelecer regras permanentes para o futuro nas disposições gerais (arts. 1º-A/58), determinou normas para tratamento do efêmero e do provisório, buscando o acertamento das irregularidades do passado, nas disposições transitórias (arts. 59/60), esmiuçando tal possibilidade de regularização para as áreas de preservação permanente (arts. 61-A/65) e para as áreas de reserva legal (arts. 66/68), além de regrar minuciosamente o caminho para a consolidação dessas áreas e de certas atividades nelas exercidas.

Dizendo de outro modo, estabeleceu o codificador florestal, nas disposições gerais, determinações jurídicas instituidoras de um sistema legal que, com regras permanentes, possa regular o futuro. Já nas disposições transitórias, que, como denota o próprio adjetivo encartado em tal circunlóquio, têm a característica do efêmero, do passageiro, do provisório, as normas tendem a exaurir-se em aplicação e eficácia com o passar do tempo. Suas regras se põem a serviço do acertamento, da adequação e da harmonização de determinadas situações encontradas pelo novel ordenamento em contrariedade ao sistema legal revogado. E, porque tem como de relevo a necessidade de sua compatibilização com o novo sistema, a nova codificação quer vê-las resolvidas e acatadas como situações legalmente consumadas, e, nesse quadro, sua regularização, com ou sem algum ônus como contrapartida para os respectivos proprietários ou possuidores, se lhe afigura importante nos moldes em que se encontra na prática a situação perante o novo sistema e por ele acaba por ser, assim, aceita.

E, nesse panorama, exatamente porque, dentre os diversos valores em cotejo, optou o codificador florestal por fixar, mais ao final de suas determinações, regras próprias ensejadoras da regularização de atividades ilícitas ambientais perpetradas em tais áreas quando da vigência da legislação revogada, e porque o STF não identificou a eiva da inconstitucionalidade nos dispositivos correspondentes, não se pode pretender objetar, depois de tudo isso, ou com regras das disposições gerais (norteadoras do futuro) para, com isso, tentar empecer a aplicação das disposições transitórias (engendradas, com determinações próprias, para o acertamento das irregularidades do passado), ou argumentar, para tanto, com princípios que, num plano mais alargado, até podem dizer respeito ao Direito Ambiental, tais como o da precaução, o da prevenção e aquele que veda o retrocesso, mas não concernem, de modo necessário e objetivo, ao sistema de aplicação do Código Florestal.

11. Conclusão

Como não é difícil concluir neste final, se houver o estabelecimento das premissas hermenêuticas adequadas, serão eliminadas, num primeiro aspecto, as contradições que alguns equivocadamente entreveem entre dispositivos, seções e capítulos da codificação florestal em vigor.

Mais do que isso, serão afastadas, num segundo aspecto, as antinomias aparentes que se vêm fixando como se fossem reais contradições entre este e outros diplomas legais no concerto entre disposições legais sobre searas contíguas.

E tudo sem esquecer, por fim, que serão evitadas decisões equivocadas, com a consequente aplicação prática e segura de nosso Código Florestal, daí resultando a pacificação, no setor, entre a preservação do que, de modo legal e efetivo, precisa ser preservado e a produção do que, de acordo com a Lei, pode e precisa ser produzido.

Originalmente publicado em: Migalhas